Um em Cem
Por cada centena de pessoas que vemos nos transportes públicos todos os dias há sempre alguma cuja cara nunca esquecemos. Hoje sentou-se um senhor à minha frente no autocarro, provavelmente já nos cinquenta, trazia um caderno na mão, atafulhado de papéis e uma régua. Cheirava a álcool e a cigarros, vestia um camisa azul, umas calças de ganga já surradas e uns ténis mal lavados. Os olhos pequenos e verdes pareciam demasiado claros na pele queimada do sol. Os cabelos eram lisos, castanhos e destoavam da barba alourada, já a dar para o cinzento. Durante toda a viagem o senhor falou-me várias vezes: engraçou comigo ainda na paragem, falou-me dos filhos que eram bons rapazes, que não tinha razão de queixa, que chegava tarde a casa, que em Angola (a sua terra), 40º C não era nada enquanto que aqui já andávamos a morrer de calor com menos de 30. Quando uma velhota que estava sentada ao nosso lado se queixou do mesmo ele disse-lhe, "Tome lá um cigarrinho que isso passa". Raio do homem era castiço e fiquei feliz só de termos trocado umas quantas palavras. Quando saí do autocarro fiquei com a sensação que aquele era um daqueles homens inteligentes por quem ninguém daria nada. É que acima de tudo, nos poucos momentos em que esteve calado, dava para ver nos olhos dele que dentro da sua mente algo se estava a passar: os lábios murmuravam uma cantilena e os dedos mexiam-se como se estivesse a tocar piano ou a dedilhar as cordas de uma guitarra.
2 Comments:
Bela história, gostei muito. Um pequeno retrato do ser.
Cool, obrigado. O senhor tinha piada.
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