Mais uma daquelas passagens lindíssimas...
Umberto Eco é um daqueles poucos escritores que consegue fazer-me rir - e é difícil fazê-lo subtilmente pela escrita. As suas personagens, carregadas de excentricidades, são sempre divertidas, com uma voz muito própria, aproximando-se muito da realidade:
- Vós não acreditais no que dizeis.
- Pois não. Mas o filósofo é como o poeta. Este último compõe cartas ideais para uma sua ninfa ideal, só para escandalizar graças à palavra os recessos da paixão. O filósofo põe à prova a frieza do seu olhar, para ver até que sinal se pode corroer a fortaleza da hipocrísia. Não quero que se atenue o respeito pelo vosso pai, pois me dizeis que vos deu bons ensinamentos. Mas não entristeçais com a sua recordação. Vejo-vos lacrimejar...
- Oh, isto não é dor. Deve ser da ferida na cabeça, que me enfraqueceu os olhos.
- Bebei café.
- Café?
- Juro que dentro em pouco estará na moda. É uma tisana. Vou arranjar-vos um pouco. Seca os humores frios, afasta os ventos, reforça o fígado, é remédio soberano contra a hidropisia e a sarna, refresca o coração, dá alívio às dores de estômago. O seu fumo é de facto aconselhado contra as fluxões dos olhos, o zumbido nos ouvidos, a coriza, constipação ou moléstia do nariz que haja. E depois sepultais com o vosso pai o incómodo irmão que haveis criado. E sobretudo arranjai amante.
- Uma amante?
- Será melhor que o café. Sofrendo por uma pessoa viva sanareis os espasmos por uma criatura morta.
- Nunca amei uma mulher - confessou Roberto, corando.
- Não falei numa mulher. Poderá ser um homem.
- Senhor de Saint-Savin! - gritou Roberto.
- Vê-se que vindes do campo.
Umberto Eco, A Ilha do Dia Antes
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